«Mas
é uma outra exploração ética da separação alma/corpo que constitui o declive
politicamente mais perigoso. Trata-se uma vez mais do esquema da obediência: o
submisso obedece cegamente. Nada sabe da
finalidade, nada sabe do propósito, nada sabe do fim, nada sabe do sentido
daquilo que lhe é exigido que faça – e talvez não queira mesmo ter conhecimento
de nada disso. Executa, age sem intenção própria, por vontade, por decisão,
“sob a responsabilidade” de outrem. Nele, “o agente não é o autor”. Separação:
ajo deste modo, faço isto, mas na verdade “não sou eu”. Sou apenas o agente, o
braço mecânico, o cérebro contábil, o movimento automático, mas em caso algum a
decisão ou o julgamento. Porque fizeste aquilo? Tinha ordens. O que significa:
não tomei a iniciativa, mal tinha escolha quanto aos meios. Não sou o autor
daquilo que faço. Um mero agente. E, por conseguinte, não sou responsável.
Apreendemos
aqui o percurso da mistificação ética, esse momento em que, de facto, já não
sofro a submissão, antes a exploro, para fazer dela uma alavanca de
justificação aos meus próprios olhos e aos dos outros, para a minha consciência
e para o mundo, para a história e para as gerações futuras.
«Será
que somos sempre “assim” tão submissos? Não exageremos o preço da desobediência
a fim, sobretudo, de nos desresponsabilizarmos e para que possamos alegar a nós
próprios e aos outros: «Claro que participo neste sistema iníquo, fazendo-o
funcionar ao meu nível insignificante – pequeno empregado, pequeno quadro,
pequeno secretário, pequeno administrador, pequeno accionista, sempre e quase
ferozmente (por uma vez) «pequeno». Mas que quereis vós, é assim, qual
imaginais que seja a minha margem de manobra, o meu espaço de acção? É isso ou
o despedimento, a obediência ou a exclusão, a docilidade ou a destituição. Como
podeis imaginar que eu possa estar de acordo com aquilo que faço, que isso me
divirta, participar no esvaziamento da humanidade, sustentar o desespero
social, degradar um pouco mais uma Natureza asfixiada, arruinar existências?
Mas, lá está, sou apenas um escravo do sistema que desaprovo, sem ter meios
para o combater. O meu braço agita-se, a minha inteligência activa-se, o meu
corpo desloca-se, o meu cérebro calcula. Mas isso não sou eu, não sou eu que
falo, não sou eu que me movimento, nem sequer sou eu que penso: são somente os
meus órgãos, animados por outrem.»
«E,
bem vistas as coisas, isso é bastante confortável; podemos aligeirar tanto as
nossas responsabilidades. Que alívio dizer a mim mesmo que não podia fazer
nada, ou melhor, dizer a mim mesmo que aquilo que fiz, pois bem, não fui
verdadeiramente eu.
«”Eu
não sou responsável, obedeci a ordens”.»
(In
“DESOBEDECER”, de Frédéric Gros, ANTÍGONA, págs. 39 a 41)
Benavente,
09.01.2023
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Victor Rosa de Freitas -