segunda-feira, janeiro 09, 2023

O SUBMISSO OBEDECE CEGAMENTE…

 

«Mas é uma outra exploração ética da separação alma/corpo que constitui o declive politicamente mais perigoso. Trata-se uma vez mais do esquema da obediência: o submisso obedece cegamente.  Nada sabe da finalidade, nada sabe do propósito, nada sabe do fim, nada sabe do sentido daquilo que lhe é exigido que faça – e talvez não queira mesmo ter conhecimento de nada disso. Executa, age sem intenção própria, por vontade, por decisão, “sob a responsabilidade” de outrem. Nele, “o agente não é o autor”. Separação: ajo deste modo, faço isto, mas na verdade “não sou eu”. Sou apenas o agente, o braço mecânico, o cérebro contábil, o movimento automático, mas em caso algum a decisão ou o julgamento. Porque fizeste aquilo? Tinha ordens. O que significa: não tomei a iniciativa, mal tinha escolha quanto aos meios. Não sou o autor daquilo que faço. Um mero agente. E, por conseguinte, não sou responsável.

Apreendemos aqui o percurso da mistificação ética, esse momento em que, de facto, já não sofro a submissão, antes a exploro, para fazer dela uma alavanca de justificação aos meus próprios olhos e aos dos outros, para a minha consciência e para o mundo, para a história e para as gerações futuras.

«Será que somos sempre “assim” tão submissos? Não exageremos o preço da desobediência a fim, sobretudo, de nos desresponsabilizarmos e para que possamos alegar a nós próprios e aos outros: «Claro que participo neste sistema iníquo, fazendo-o funcionar ao meu nível insignificante – pequeno empregado, pequeno quadro, pequeno secretário, pequeno administrador, pequeno accionista, sempre e quase ferozmente (por uma vez) «pequeno». Mas que quereis vós, é assim, qual imaginais que seja a minha margem de manobra, o meu espaço de acção? É isso ou o despedimento, a obediência ou a exclusão, a docilidade ou a destituição. Como podeis imaginar que eu possa estar de acordo com aquilo que faço, que isso me divirta, participar no esvaziamento da humanidade, sustentar o desespero social, degradar um pouco mais uma Natureza asfixiada, arruinar existências? Mas, lá está, sou apenas um escravo do sistema que desaprovo, sem ter meios para o combater. O meu braço agita-se, a minha inteligência activa-se, o meu corpo desloca-se, o meu cérebro calcula. Mas isso não sou eu, não sou eu que falo, não sou eu que me movimento, nem sequer sou eu que penso: são somente os meus órgãos, animados por outrem.»

«E, bem vistas as coisas, isso é bastante confortável; podemos aligeirar tanto as nossas responsabilidades. Que alívio dizer a mim mesmo que não podia fazer nada, ou melhor, dizer a mim mesmo que aquilo que fiz, pois bem, não fui verdadeiramente eu.

«”Eu não sou responsável, obedeci a ordens”.»

(In “DESOBEDECER”, de Frédéric Gros, ANTÍGONA, págs. 39 a 41)

Benavente, 09.01.2023

- Victor Rosa de Freitas -



on-line
Support independent publishing: buy this book on Lulu.