«Katherine
prosseguiu:
«
- No modelo da consciência não-local, o cérebro é uma espécie de rádio que “recebe”
a consciência e, tal como todos os rádios, tem inúmeras estações a bombardeá-lo
o tempo todo. Portanto, consegue perceber de imediato porque é que um rádio
precisa de um botão para o sintonizar: um mecanismo que lhe permita escolher “uma”
só frequência para receber. O próprio rádio tem capacidade para receber todas
as estações, mas, sem uma maneira de filtrar as que capta, tocaria todas as frequências
ao mesmo tempo. O cérebro funciona da mesma maneira: tem uma série complexa de
filtros para evitar que a mente fique “sobrecarregada” com demasiados estímulos
sensoriais… de modo que possa concentrar-se só numa pequena fatia da
consciência universal.
«”Faz
todo o sentido”, refletiu ele. “A nossa perceção da luz e som é filtrada”. Langdon
sabia que a maior parte dos seres humanos não tinha noção de que só
experienciava uma pequena fração da gama de frequência prática e do espectro eletromagnético:
o resto passava-nos ao largo, para lá dos botões de sintonização.
«
- A atenção seletiva é um excelente exemplo de filtragem do cérebro – disse Katherine.
– Chama-se «efeito festa». Imagina-te numa festa cheia de gente com o teu
cérebro focado só nas palavras que vêm da pessoa que está a falar contigo e,
depois, começas a entediar-te e o teu foco desvia-se naturalmente para uma
conversa mais interessante a decorrer noutro ponto da sala. É isso que te
permite filtrar o ruído de fundo e não ser subjugado por “todas” as vozes que
estão ao alcance dos teus ouvidos.
«”Reuniões
da faculdade”, pensou Langdon, que muitas vezes dava por si a sintonizar uma
música que tocava lá fora no pátio, enquanto os colegas discutiam o programa ou
os horários.
«
- O hábito é outro tipo de filtro – continuou Katherine. – O cérebro bloqueia
estímulos sensoriais repetidos e fá-lo de maneira tão eficaz que deixamos mesmo
de ouvir o zumbido constante do ar condicionado ou de sentir os óculos postos
no nariz. Esse filtro é tão poderoso que podemos correr a casa toda à procura
dos óculos que estão literalmente à frente dos olhos ou de um telemóvel que
temos na mão.
«Langdon
fez que sim com a cabeça. Há décadas que deixara de sentir o relógio do Rato
Mickey no pulso.
«Sabia
que o conceito de «realidade filtrada» era um tema recorrente nas antigas
escrituras. O Vedanta hindu, que tinha inspirado grandes físicos quânticos Como
Niels Bohr e Erwin Schrödinger, descrevia a mente física como um «fator
limitativo» que só conseguia captar uma fração da consciência universal
conhecida como “Brahman”. Os sufis definiam a «mente» como um véu que
disfarçava a luz da divina consciência. Os cabalistas diziam que as “klipot” da
mente obscureciam quase toda a luz de Deus. E os budistas avisavam que o ego
era um lente limitadora que nos fazia sentir separados do universo: “uni-versum”,
literalmente «tudo como um».
«
- A neurociência moderna – continuou Katherine – identificou agora o mecanismo
biológico através do qual o cérebro filtra os dados que recebe. – Um leve
sorriso perpassou-lhe os lábios. Chama-se GABA. Ácido gama-aminobutírico.
«
- Certo. – Langdon lembrou-se de que a maior parte do trabalho de doutoramento
de Katherine fora sobre a química do cérebro.
«
- O GABA é um composto notável, um mensageiro químico no cérebro que desempenha
um papel fundamental da regulação da atividade cerebral. Mas provavelmente não
da maneira que julgas. Especificamente, o GABA é um agente “inibidor”.
«
- Isso significa o quê, “impede” a atividade cerebral?
«
- Exato. Diminui os disparos neuronais e “constringe” a atividade geral dos
neurónios. Isto é, o GABA desliga partes do cérebro, numa tentativa de filtrar
estímulos excessivos. No nosso entendimento mais básico, a filtragem feita pelo
GABA assegura que o cérebro não fica sobrecarregado com demasiada informação.
Usando a analogia do rádio, o GABA é como um sintonizador que limita a receção
a uma só frequência e bloqueia dúzias de outras.
«
- Até agora, tudo isso faz sentido…
«
- O GABA chamou-me a atenção há uns anos – continuou Katherine, entusiasmada. –
Li que o cérebro de um recém-nascido tem níveis incrivelmente “elevados” de
GABA, que filtram tudo, exceto o que está diretamente à frente da cara do bebé.
Assim, os recém-nascidos praticamente não têm noção dos pormenores espalhados
pelo espaço à sua volta. Os filtros funcionam como um par de rodinhas de
aprendizagem, que protegem a mente do bebé de demasiada estimulação conforme
ela se desenvolve. Com o crescimento, os nossos níveis de GABA diminuem
lentamente e começamos a captar uma maior parte do mundo e a ganhar um
entendimento mais vasto.
«”Fascinante”,
pensou Langdon. Sempre julgara que os recém-nascidos tinham um campo minúsculo
de perceção por não conseguirem ver bem.
«
- Portanto, pus-me a investigar mais a fundo – explicou Katherine – e descobri
que os monges tibetanos também têm níveis excecionalmente elevados de GABA durante a meditação. Ao que
tudo indica, o transe meditativo causa um aumento do neurotransmissor inibidor,
que desliga quase todos os disparos neuronais, evitando basicamente que a maior
parte do mundo exterior entre no cérebro durante o estado de meditação
profunda.
«”A
ideia esquiva da mente vazia”, refletiu Langdon, que conhecia o objetivo da
meditação, mas nunca soubera qual era o processo químico através do qual era
alcançado. “Bloqueando literalmente o mundo… regressando à pureza da mente
recém-nascida”.
«
- Os resultados não foram assim tão surpreendentes – disse Katherine -, mas
deram-me uma ideia: a de a consciência humana ser um “sinal”… que flui para o
cérebro através de uma série de portas.
«
- Portas que decidem a quantidade de mundo que deixam entrar.
«
- Exato, e foi há cerca de dezoito meses, durante a minha investigação mais
aprofundada sobre o GABA, que me deparei com um artigo de neurociência escrito…
pela Brigita Gessner.
«”Ah,sim”,
pensou Langdon, “foi isso que suscitou o convite para a Katherine vir fazer a
palestra a Praga”.
«
- O artigo de Gessner – revelou Katherine – era sobre um “chip” para a
epilepsia que ela inventou e que era capaz de contrariar uma crise iminente,
desencadeando a resposta natural GABA do cérebro, «acalmando» literalmente os
nervos. Fazia sentido. É que a epilepsia é uma patologia muitas vezes
relacionada com níveis perigosamente “baixos” de GABA, que é o mecanismo de
travagem do cérebro. Quando o GABA é muito baixo, o cérebro entra em hiperatividade,
com disparos neuronais descontrolados, e em última instância…
«
- Tem um ataque epilético.
«
- Sim – confirmou ela, bebendo um gole rápido da sua “Kofola”. – A tempestade elétrica
caótica de um ataque epilético é exatamente o “oposto” da mente focada e vazia de um monge
a meditar; os ataques estão relacionados com um défice de GABA… e a meditação
com um excesso de GABA. Eu estava ciente de tudo isto, mas o artigo dela
lembrou-me que os ataques epiléticos são são muitas vezes seguidos de um
período refratário agradável conhecido como beatitude pós-ictal: um estado de
consciência sereno e alargado, acompanhado de irrupções de conectividade,
criatividade, esclarecimento espiritual e experiências fora do corpo.
«Langdon
recordou o episódio com Sasha, bem como as descrições feitas por inúmeros
visionários epiléticos da História.
«
- E, de repente, dei por mim a pensar – disse Katherine – “como” é que um
cérebro epilético consegue fazer tão depressa a transição da tempestade de uma
crise… para a beatitude pós-ictal.
«Langdon
encolheu os ombros.
«
- Deduzo que um pico natural dos níveis de GABA… acalme a tempestade?
«
- É um belo palpite… eu pensei o mesmo. Chama-se inibição de rebote e acontece,
de facto, mas não imediatamente. Primeiro, antes disso, acontece “outra” coisa.
O cérebro “reinicia”. O sistema inteiro desliga. E, quando volta a ligar, fá-lo
“gradualmente”… ganhando tempo para que o cérebro restaure os seus níveis de
GABA, volte a ativar os seus filtros e proteja o cérebro que desperta de
demasiados estímulos.
«
- É como se acordássemos de manhã… abríssemos os olhos “devagar” para dar às
nossas pupilas tempo para se fecharem e filtrarem uma parte da luz matinal.
«
- É isso mesmo! Só que, “neste” caso, nunca vemos a verdadeira luz matinal,
porque, quando acordamos, alguém está simultaneamente a fechar umas cortinas
grossas nas nossas janelas, por isso não conseguimos ver o que está realmente
lá fora.
«
- E esse “alguém”… depreendo que seja o GABA?
«
- Exato. O GABA “normalmente” fecha as cortinas a tempo, antes de abrirmos os
olhos. Mas se houver uma falha de sincronismo e as cortinas não fecharem
suficientemente depressa…
«
- Captamos um vislumbre do mundo exterior.
«
- Sim – confirmou ela, sorrindo. – E parece que é linda. A realidade sem
filtros. A beatitude pós-ictal. A consciência pura.
«”Impressionante”,
cogitou ele, perguntando-se se algumas das famosas «centelhas de génio» da
História poderiam ser atribuídas a uma falta de sincronismo: um breve instante
em que o portal para a realidade ficou, por erro, entreaberto.
«
- Quanto mais pensava no GABA – disse Katherine -, mais me apercebia de que o
GABA era a chave que eu procurava…
«
- A chave para…?
«
- “A chave para compreender a consciência!” – exclamou ela. – Os seres humanos
têm uma mente extraordinariamente poderosa, mas têm também filtros
extraordinariamente eficientes para evitar uma sobrecarga de estímulos. O GABA
é o véu protetor que evita que o nosso cérebro experiencie aquilo com que não
conseguimos lidar. “Limita” a vastidão da nossa consciência. Este químico, por
si só, pode ser a razão por que os humanos não conseguem captar a “realidade”
como ela é verdadeiramente.
«Langdon
recostou-se no banco luxuoso da limusina, absorvendo a ideia provocadora.
«
- Estás a sugerir que existe uma realidade à nossa volta… que não conseguimos
captar?
«
- É “exatamente” isso que estou a sugerir, Robert. – Os olhos dela faiscaram de
entusiasmo. – Mas isso nem sequer é da missa a metade.»»
(In
“O SEGREDO DOS SEGREDOS”, de Dan Brown, Planeta, págs. 353 a 357)
Benavente,
14.09.2025
-
Victor Rosa de Freitas -