Notas sobre crimes sexuais contra menores
Começamos por fazer, com a devida
vénia, algumas citações da “Dissertação
apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra para obtenção do
grau de Mestre em Medicina Legal e Ciências Forenses” de KAREN ELÓDIA BRITO
DA SILVA – Coimbra 2010 (LINK), por tal documento analisar, com objectividade e rigor, a disciplina dos
crimes sexuais, designadamente em que são vítimas menores:
1.- “(…) o objectivo fulcral
na disciplina dos crimes sexuais, não pode ser outro, senão a protecção do bem
jurídico, sendo a liberdade sexual[…] «A liberdade de se relacionar sexualmente
ou não e com quem, para os adultos; a liberdade de crescer na relativa
inocência até se atingir a idade da razão para então e aí se poder exercer plenamente
aquela liberdade.»” (pág. 13)
2.- “Artº. 171 CP:
1-Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o
levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de
1 a 8 anos;
2- Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal ou coito
oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é
punido com pena de prisão de 3 a 10 anos;
3- Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo
170.º; ou
b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito,
espectáculo ou objecto pornográficos;
é punido com pena de prisão até três anos.
4 - Quem praticar os actos descritos no número anterior com intenção
lucrativa é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.”
“Da leitura do n.º1 [resulta] que a prática de actos sexuais continua a
ser punível, por ser prejudicial ao desenvolvimento natural e livre da esfera
sexual do menor.”
“Segundo FIGUEIREDO DIAS o acto sexual de relevo deve entender-se como sendo
todo o acto que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assuma uma natureza,
um conteúdo ou um significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade
e, por esta via, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o
pratica.” (pág. 15)
3.- “O bem jurídico protegido
“O direito Penal Português deve intervir para garantir a vida em
comunidade, para proteger a pessoa, dos seus direitos e liberdades, mas
respeitando sempre o seu livre arbítrio. Na norma do art. 171º CP (abuso sexual
de crianças) protege-se especificamente o direito à protecção da sexualidade
numa fase inicial ou de desenvolvimento, carecendo inevitavelmente de tutela
jurídica. Consagra-se, assim, a protecção da liberdade sexual, na sua vertente
defensiva,” tutelando-se uma vontade individual
ainda insuficientemente desenvolvida, contra os abusos que sobre ela executa um
agente, aproveitando-se da sua imaturidade. (pág. 19)
4.- “Entende-se que o limite
etário dos catorze anos corresponde à fronteira entre a infância e a
adolescência. Compreende-se, assim, que a lei classifique como crime contra
autodeterminação sexual, previsto no art. 171º CP, o abuso sexual de crianças.
“O bem jurídico encontra a sua fonte na Constituição da República
Portuguesa, mais precisamente, no artigo 69º, relativamente ao qual escrevem
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA: "Consagra-se neste artigo um direito das crianças
à protecção, impondo-se os correlativos deveres de prestação ou de actividade ao
Estado e à sociedade. A razão da lei penal, mais do que a busca de valores
comuns, é o modelo dum desejo partilhado de segurança.
“O ordenamento jurídico português proclama que o bem jurídico protegido
é a liberdade pessoal do ponto vista sexual do adulto e o desenvolvimento
imperturbado da juventude, reconduzindo-se este à protecção da liberdade na
medida em que a protecção da juventude se deve á circunstância de o jovem não
ser ainda capaz de se autodeterminar na esfera sexual.
“A criança encontra-se numa situação especial em relação ao adulto,
entendendo-se que deve ser garantido e preservado o seu futuro, beneficiando de
condições de igualdade de oportunidades.
“A especificidade dos abusos sexuais reside numa necessidade de
protecção da sua inocente confiança no outro. O bem jurídico tutelado com a
incriminação de abuso sexual de crianças visa nomeadamente proteger a
autodeterminação sexual, mas sob uma forma muito particular: protegê-la face a
condutas de natureza sexual que, tendo em consideração a idade precoce da
vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento
da sua personalidade. A lei presume que a prática de actos sexuais com crianças
prejudica o desenvolvimento global da própria vítima.
“Segundo COSTA ANDRADE, até
atingir um certo grau de desenvolvimento, indiciado por determinados limites
etários, o menor deve ser preservado dos perigos relacionados com o desenvolvimento
prematuro em actividades sexuais” (pág. 20)
5.- “FIGUEIREDO DIAS fala numa obrigação de castidade e virgindade quando estejam
em causa menores, seja de que sexo for.
“O tipo legal previsto no art. 171º CP sob a designação de crimes
contra a autodeterminação sexual visa proteger o direito à protecção da
sexualidade. Na realidade, deve-se considerar o bem jurídico protegido a
liberdade sexual em sentido amplo, que, não obstante não sofrer alterações em
função da idade, se concretiza de formas diferentes. Consequentemente são
punidas condutas que incidem sobre menores por, atendendo à idade, se entender
que estes não são capazes de se autodeterminar sexualmente. Do exposto
retira-se que são punidas as condutas que ofendem a liberdade sexual da criança,
ou seja, a intervenção penal fica sujeita aos interesses de cada cidadão e não
a uma concepção geral da comunidade relativamente à moral e ao pudor.
“Em síntese, os tipos legais
previstos, pretendem preservar a pureza da criança para que, no futuro, estas
consigam alcançar o pleno e livre desenvolvimento da sua personalidade na
esfera sexual.” (pág. 21)
(FIM DE CITAÇÕES DA OBRA REFERIDA,
com negrito e sublinhado
nossos)
Poder-se-á afirmar, com base em
todas as citações referidas, designadamente na última, que se a criança, embora
menor de 14 anos, já perdeu a sua pureza, castidade e inocência sexual,
estando, pois comprometido que, no seu futuro, consiga alcançar o pleno e livre
desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, o agente que, com ela assim,
pratica acto sexual de relevo, ainda comete o crime de abuso sexual de menores?
Se a teleologia do tipo criminal
visa proteger “a castidade e virgindade
quando estejam em causa menores, seja de que sexo for” e se estas já não
existem, mantém-se a ilicitude da conduta do agente adulto?
Perguntando de outra maneira: se
o adulto tem práticas sexuais (sem qualquer violência, ou cairíamos no tipo que
protege as próprias vítimas adultas) com menor verdadeiramente prostituído sexualmente,
ainda se mantém a ilicitude da conduta daquele?
Parece bem, salvo douta opinião
divergente, que a resposta a todas estas questões apenas pode ser negativa: não
há, em tais casos, ilicitude e, portanto, a prática de crime.
Só deverão ser punidas aquelas
condutas enquanto o menor, vítimas delas, tiver pudor ou inocência e castidade
sexual, ou seja, só devem ser punidos os agentes que, de algum modo atentem
contra o mesmo pudor, inocência e castidade sexual do menor.
Será que no caso Casa Pia – dando
de barato a prova da prática dos factos imputados aos agentes – os arguidos,
com excepção do Bibi (que “iniciou”, segundo parece, já que era de dentro da
casa, menores em práticas sexuais), cometeram, assim, qualquer crime?
O
Acórdão de condenação de 1ª instância usa sempre da mesma expressão quanto a
esta questão, em relação a todos e cada um dos arguidos:
“O arguido sabia que manter com
o jovem as práticas sexuais que o Tribunal deu como provadas – coito oral e
coito anal - afectava de forma grave o normal e saudável desenvolvimento
psíquico, afectivo e sexual do mesmo, tendo agido de forma voluntária, livre e
consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida pela lei.
Será que é assim, mesmo relativamente a menores cujo pudor, inocência e
castidade sexual já haviam sido anteriormente perdidos?
Que “normal e saudável
desenvolvimento psíquico, afectivo e sexual” está o Tribunal a defender?
Depois do “caldo entornado”, por falha absoluta, a montante, das
instâncias de controlo do desenvolvimento normal de crianças – que tinham a
responsabilidade de as proteger e denunciar o “início” dos abusos -, pretende-se
punir – e pune-se –, a jusante, criminalmente, os “monstros” que apenas podem
ser sancionados MORALMENTE.
E a resposta de todos os arguidos
(mesmo o Bibi, com aparente evidente falta de fundamento, quanto às suas possíveis
condutas de “iniciação” de menores) é que não cometeram qualquer crime…
E, na verdadeira teleologia das “coisas”…mesmo
com a prova dos factos…parece bem que não (com a ressalva assinalada)…e o citado
fundamento (chapa) do Tribunal não parece colher…de todo.
Não será este um caso como
aqueloutro em que um indivíduo, portador do vírus da SIDA, é acusado de infectar e, assim, ofender
a integridade física de outro, com quem manteve relações sexuais, sendo certo
que este último já estava infectado com o mesmo vírus quando se relacionaram?
Às verdadeiras vítimas de crimes
(os menores a quem foi tirada a castidade, o pudor e a inocência sexual) acrescentam-se
novas vítimas de crimes (agora adultos, ao serem punidos criminalmente pelo
Estado, onde só poderia haver condenação MORAL).
PS.- Como resulta da leitura
atenta deste texto, parte-se do princípio, nas suas considerações, que é
verdadeira a matéria de facto dada como provada no julgamento do processo Casa
Pia, e que a expressão «“monstros” que apenas podem ser sancionados MORALMENTE»
é usada em tal contexto e enquadramento. Ressalva-se, contudo, a dúvida
insanável que nos continua a perseguir quanto à veracidade, para os juízes, dos depoimentos
(único meio de prova) das vítimas de “abusos sexuais”, uma vez que já não possuíam
a castidade, o pudor e a inocência sexual (e não só) e dadas as suas
comprovadas personalidades problemáticas (e não só) e os seus depoimentos cheios de contradições endógenas e exógenas.
Esclarecimento: este meu artigo NÃO DEFENDE que os adultos devem poder ter actos sexuais com menores, designadamente menores de 14 anos. O
que ali se afirma e se tenta concluir é que, no quadro legal vigente, sendo a
criminalização de tais actos fundamentada na autodeterminação sexual do menor, isto é, na defesa de uma vontade individual ainda
insuficientemente desenvolvida, contra os abusos que sobre ela executa um
agente, aproveitando-se da sua imaturidade, tal fundamentação exclui a
ilicitude do tipo quando o menor já perdeu a castidade, o pudor e a inocência sexual.
Assim, das duas uma:
- ou se reconhece que a autodeterminação sexual do menor em tais
circunstâncias (já sem castidade, pudor
ou inocência sexual) não é fundamento suficiente para a punição, por falta
de ilicitude do acto do agente adulto ou
- querendo-se manter a punição
mesmo em tais casos, deve o tipo criminal assentar também em razões de moralidade social,
designadamente impondo aos agentes criminalmente imputáveis limites absolutos à
sua vivência sexual com qualquer menor de 14 anos.
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