Breves apreciações jurídicas sobre o “caso” Casa Pia e propostas de alteração legislativas
Apreciação do artº 356º do Código de Processo Penal:
Este normativo prevê, numa abordagem sucinta e restritiva – mas é o que aqui importa – que as declarações de testemunhas, declarantes e assistentes prestadas em inquérito e instrução e tomadas pelo Ministério Público e órgão de polícia criminal, só podem ser lidas em audiência com o consentimento da acusação (e assistente(s)) e da defesa.
A razão de ser desta consagração legislativa prende-se com a alegação de dois princípios:
1º - Toda a prova deve ser feita em julgamento, com mediação e oralidade;
2º - Porque a história ensina que muitos daqueles depoimentos poderiam ser distorcidos (através de torturas ou sevícias ou qualquer outro tipo de pressão não aceitável legalmente), os mesmos só poderiam ser lidos em audiência com o acordo da acusação e defesa.
A esta questão se objecta da seguinte forma:
Se a razão de ser do acordo para a leitura de tais depoimentos assenta fundamentalmente no ponto 2º antes referido, não se vê porque possa a acusação opor-se à sua leitura.
Assim sendo, só a defesa se deveria poder opor à sua leitura.
É que a defesa é que pode não ter interesse em que se conheçam depoimentos inquinados que podem incrimina-la indevidamente mas também pode ter interesse em que se conheçam tais depoimentos, designadamente para desacreditar a pessoa que os fez, tudo isto dentro do princípio constitucional de que o “arguido” deve ter todas as garantias de defesa, consagrado no artº 32º da Constituição da República Portuguesa.
Ora, não há nenhuma razão (plausível, que eu veja) para que a acusação também se possa opor à sua leitura.
…xxx…
Dispõe o artº 127º do Código de Processo Penal:
Artigo 127.º
Livre apreciação da prova
Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Este preceito do Código de Processo Penal consagra as chamadas presunções naturais – ilações que se tiram de factos conhecidos para afirmar outros desconhecidos.
Há quem lhes chame, inclusive, regras de experiência comum – ou seja, são os axiomas, as evidências, os apoftegmas -, isto é, “a água molha”, “o fogo queima”, “se alguém apontar intencionalmente uma arma de fogo à cabeça de alguém e puxar o gatilho, tem a intenção de matar”, etc., etc.,.
Só que, muitas vezes, os juízes chamam “regras de experiência (comum)” a “regras” que não são da experiência da generalidade das pessoas, mas apenas as da sua própria (in)experiência.
Esta questão prende-se com a segunda, ou seja, a “livre convicção do julgador”.
Qualquer manual de direito processual penal de uma faculdade de direito ensina que a “livre convicção do julgador” deve ser objectivável e motivável, isto é, em termos gerais, que deve ser fundamentada o suficiente para ser sindicável e contraditada nos seus fundamentos.
Dando o exemplo concreto deste “caso”, a “ressonância da verdade” nem é uma regra de experiência (experiência de quem?, pergunta-se, só se for apenas dos juízes, mas então não é de experiência comum) nem pode formar a “livre convicção do julgador”, porque não é objectivável e motivável, porque não estabelece um nexo de causalidade compreensível (e possível de contraditar) entre o depoimento e a “verdade”.
Este normativo devia, pois, ser alterado e a passar a ter a seguinte redacção:
Livre apreciação da prova
Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente, mas fundamentada e sempre objectivável e motivável, de modo a poder ser contraditada e sindicada.”
O último normativo citado e apreciado prende-se e liga-se, também, com os seguintes:
Artigo 151.º
Quando tem lugar
A prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
A “ressonância da verdade” invocada no acórdão de 1º instância viola frontalmente este preceito legal porque, a final, os senhores juízes estão a fazer uma peritagem “psicológica” (aliás, esotérica, hermética e insindicável) às testemunhas que exige especiais conhecimentos científicos que eles não têm e que são inerentes apenas a peritos cientificamente reconhecidos como tal.
Artigo 163.º
Valor da prova pericial
1 — O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 — Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.
A questão aqui prende-se com a validade da prova pericial. Esta pode ser posta em causa por outros peritos. Mas se o julgador divergir do julgamento contido no parecer dos peritos, das três uma: ou considera a prova pericial sem valor, por ter sido contraditada por outros peritos, considerando esta última válida e a primeira a afastar; ou considera as duas sem valor e é como se não existisse qualquer peritagem; ou não concorda com nenhuma das duas e escolhe uma terceira via. Só que, neste último caso, a lei não o deveria permitir EXPRESSAMENTE. Porquê? Porque se a perícia é necessária e se o juiz não é perito…a conclusão salta à vista.
Assim sendo, o artigo 163º, nº 2, deveria ter a seguinte redacção:
“Artigo 163.º
Valor da prova pericial
1 — …
2 — Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência, com base em juízo técnico, científico ou artístico de melhor valor.”
Se esta redacção já estivesse vigente, inequívoco seria que a “ressonância da verdade” invocada pelo acórdão de 1ª instância não teria qualquer valor legal por violação flagrante do direito de defesa dos arguidos, muito embora isso já resultasse claro da simples aplicação dos princípios gerais de direito.
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