sexta-feira, março 13, 2015

A SINGULARIDADE DE JESUS DE NAZARÉ...


«Em meu entender, a vida, os ensinamentos e a actividade de Jesus de Nazaré sobressaem claramente em comparação com outros fundadores de religiões. Jesus não foi uma pessoa formada na corte, como aparentemente foi Moisés, nem filho de príncipe, como Buda. Mas também não foi um erudito e político, como K'ung Fu-tzu, nem um comerciante rico e cosmopolita, como Maomé. É precisamente por a sua extração social ser tão insignificante, que a sua importância duradoura parece ainda mais espantosa. Ele não defende a validade incondicional de uma lei escrita que se desenvolve sem cessar (Moisés), nem o retiro monástico em ascético ensimesmamento dentro da comunidade regulamentada de uma ordem (Buda), nem a renovação da moral tradicional e da sociedade estabelecida em consonância com uma lei cósmica universal (K'ung Fu-tzu), nem revolucionárias conquistas violentas em luta contra os infiéis e a fundação de um estado teocrático (Maomé).
«Jesus também me parece inconfundível no sistema de coordenadas da sua época. Não se deixa enquadrar com os poderosos nem com os rebeldes do país, nem como os moralizadores nem com os submissos. Revela-se como um provocador, mas tanto à direita como à esquerda. Não está protegido por nenhum partido, desafia em todas as direções: «O homem que quebrava todos os esquemas» (Eduard Schweizer). Não é um sacerdote, mas parece estar mais perto de Deus do que os sacerdotes. Não é um revolucionário político ou social, mas parece mais revolucionário do que os revolucionários. Não é monge, mas parece mais livre em relação ao mundo do que os ascetas. Não é um cauísta moral, mas tem mais fibra moral do que os moralistas. Os evangelhos mostram-no incessantemente: Jesus é diferente! Apesar dos múltiplos paralelismos em pormenores concretos, o Jesus de Nazaré histórico revela-se, em conjunto, totalmente inconfundível, tanto nesse tempo como na atualidade.
«Tendo em vista a nossa "práxis vital", o aspeto decisivo da mensagem de Jesus do reino e da vontade de Deus é totalmente inequívoco: em ditos, parábolas e factos, ganha forma a proclamação alegre e grata de uma nova liberdade. Para mim, aqui e agora, isto significa:
« - precisamente em tempos de febre bolsista e de valor das ações das empresas, não se deixar dominar pela avidez de dinheiro e prestígio;
« - precisamente em tempos de renascimento de uma política imperialista, não se deixar influenciar pela vontade de poder;
« - precisamente em tempos de desaparecimento inaudito de tabus e consumismo desenfreado, não se deixar escravizar pela propensão para o sexo nem pela ânsia de prazer e diversão;
« - precisamente em tempos em que só o rendimento parece determinar o valor da pessoa, defender a dignidade humana dos fracos, «improdutivos» e pobres.
«Trata-se de uma "nova liberdade": tornarmo-nos livres a partir da realidade de Deus, que abrange mais, que não só me envolve e penetra a mim como a todos os seres humanos, e a que Jesus chama «Pai». E partindo de Deus, comprometidos em última instância apenas com ele, libertarmo-nos para as pessoas. Não preciso de me tornar um asceta; como é sabido, Jesus também bebia vinho e participava em banquetes. Mas também não devo cair num estilo de vida egoísta, atendendo apenas aos meus próprios interesses e satisfazendo as minhas necessidades. Pelo contrário, há que procurar ter presente, no dia a dia, o bem-estar do próximo que, neste preciso momento, necessita de nós, o que significa, em vez de querermos dominá-lo, tentarmos servi-lo tanto quanto pudermos. E praticarmos o bem em tudo e, quando for necessário, exercermos o perdão e a renúncia. Reconheço-o: um desafio sempre novo - também para mim pessoalmente no decurso de uma longa vida.
«Para o próprio Jesus, a observância dos preceitos elementares do humanitarismo é, por assim dizer, algo que é considerado ponto assente. Cumprir os mandamentos de Deus significa também para ele: não matar, não mentir, não roubar, não fazer mau uso da sexualidade. Nisso coincide com as exigências morais dos demais fundadores de religiões: a base para a ética mundial. Mas, ao mesmo tempo, radicaliza-as. No sermão da montanha, vai muito mais além delas: em vez de acompanharmos o outro apenas durante a «milha» obrigatória, deveríamos acompanhá-lo, se fosse esse o caso, durante «duas milhas»; no entanto, isto não deve ser entendido como uma lei geral, que teria de ser sempre cumprida; essa pretensão seria pouco realista, como muitos críticos judeus aduzem, com razão. As «exigências» de Jesus são um convite, um desafio, a que ousemos assumir, conforme o caso, um compromisso generoso em prol do próximo, seguindo o exemplo do (para os judeus, herético) samaritano para com o desconhecido que fora vítima dos salteadores. Assim, praticar, na vida concreta, um amor criativo que não possa ser exigido por qualquer lei. «Amor»: uma palavra que Jesus mal utiliza, mas que, na prática, constitui a sua exigência máxima, tão universal como radical; um amor sem sentimentalismo que diz respeito a todos, incluindo o adversário, e que não permite que o inimigo seja eternamente inimigo.
«Para mim, e para inúmeras pessoas, no seu conjunto uma grata e libertadora espiritualidade da não violência, da justiça, da misericórdia e da paz. Inclusive uma espiritualidade da alegria, que não coloca cargas desnecessárias sobre os ombros das pessoas. Uma espiritualidade que congrega e não divide.»
(In "Aquilo em que creio", de Hans Küng, Temas e Debates-Círculo de Leitores, págs. 216 a 219)
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