PAÍS SUSPEITO
Público
Autor: Rui Ramos
Data: Quarta-feira, 5 de Setembro de 2007
Pág.: 33
Temática: Espaço público
Insuficiente para produzir evidência, o sistema serve sobretudo para avalizar as mais desvairadas suspeições
Um país suspeito
A incapacidade do sistema judicial para produzir provas e julgar em tempo útil leva frequentemente a que, no fim, e mesmo com o caso julgado, em vez de inocentes ou culpados, continue a haver sobretudo suspeitos.
Passar tempo no estrangeiro tem por vezes este risco: o de descobrirmos mais coisas sobre o nosso país do que sobre aquele onde estamos de visita. Foi o que me aconteceu estas férias. Como de costume, gastei-as num vale do Sul de Inglaterra, sem cobertura de telemóvel e com raro acesso à Internet. Obrigado a ver o mundo pela fresta dos jornais e televisão locais, habituei-me a deixar Portugal desvanecer-se sem rasto no mês de Agosto. Este ano, porém, foi uma excepção. Portugal seguiu-me até ao vale. Não por causa das directas do PSD ou dos vetos presidenciais, matérias sem possibilidade de conseguir registo no radar da imprensa britânica, nem por causa de Mourinho e de Ronaldo, portugueses que, para o público inglês, não pressupõem a existência de um país a norte das praias algarvias.
A matéria que pôs Portugal no mapa foi, como supõem, o caso McCann. Só que, em Agosto, a imprensa e os ingleses do meu conhecimento deixaram de discutir o desaparecimento, para começar a discutir o país em que o desaparecimento aconteceu.
E eis como o meu patriotismo foi severamente testado.
À mesa do pequeno-almoço, entre jornais, ou no pub ao anoitecer, depois dos noticiários televisivos, foi-me pedido para explicar demasiadas coisas. Era verdade que faltavam à polícia recursos básicos para uma investigação criminal, forçando-a a depender de cães e laboratórios ingleses? Os investigadores policiais em Portugal tinham todos o hábito de almoçar longamente quando em serviço, deixando escapar comentários audíveis sobre os processos em que trabalhavam? Como era possível a imprensa e o sistema judicial viverem numa aparente promiscuidade?
Notem que o caso McCann fez emergir, na imprensa britânica, fragmentos da crónica judiciária portuguesa, como o episódio de Leonor Cipriano, com a sua cara amassada.Com alguma inquietação, vi os meus convivas ingleses tentar pronunciar a palavra "arguido". Constatei como aos mais informados não escapou o papel fundamental da auto-incriminação (indirectamente, por escuta, ou directamente, através de confissão) nos processos portugueses. Percebi que os mais cépticos, a meio do mês, se tinham convencido de que só a nacionalidade no passaporte poupara as feições de Kate McCann à sorte das de Leonor Cipriano. Nenhum argumento impediu os meus interlocutores de concluírem que em Portugal se chama "justiça" a uma máquina lenta e inconclusiva, mais apropriada para triturar a reputação de um inocente do que para identificar e punir um culpado.
Desde Byron e dos oficiais britânicos da guerra peninsular que ajudaram à fama europeia do "água vai" em Lisboa, os ingleses mostraram geralmente a melhor vontade para pensar o pior dos seus aliados. Infelizmente, não podemos assacar inteiramente esta visão da justiça portuguesa a esse velho preconceito.
O caso McCann deixou os ingleses descobrir algo de fundamental sobre a nossa existência: para viver bem em Portugal é preciso mais sorte do que noutras partes do mundo, sobretudo quando nos calha tornarmo-nos interessantes para a polícia e os tribunais. A incapacidade do sistema judicial para produzir provas e julgar em tempo útil leva frequentemente a que, no fim, e mesmo com o caso julgado, em vez de inocentes ou culpados, continue a haver sobretudo suspeitos. O "arguido" faz as vezes de um condenado aos olhos da opinião. Insuficiente para produzir evidência, o sistema serve sobretudo para avalizar as mais desvairadas suspeições, boatos e preconceitos.
Mr. Gradgrind, com a sua obsessão por factos, não se teria dado bem em Portugal. Esta não é uma terra de factos mas de teorias. Quando regressei a Lisboa, apanhei o que me pareceram sugestões de que o caso McCann estaria a ser condicionado por uma conspiração envolvendo o Governo inglês. Creio que este pormenor da fantasia portuguesa escapou felizmente à imprensa inglesa. Já nos basta passar por incivilizados. Não precisamos, ainda por cima, de parecer ridículos.Seria tentador fazer crítica cultural, lembrando as velhas maneiras inquisitoriais, desde a pressão sobre o suspeito para se auto-incriminar, até ao carácter inconclusivo do processo (nunca ninguém teve a certeza de que os acusados "judaizavam"). Mas talvez a continuidade histórica seja uma explicação espúria. Será mais importante considerar a relativa pobreza do país, e o que daí deriva - a falta de meios, de exigência, de rigor e de profissionalismo. A pobreza é também isto. O resultado é um país de suspeitos - e, para quem está habituado a outros padrões civilizacionais, um país altamente suspeito.
(Artigo retirado, com a devida vénia ao seu autor, da secção de notícias do site do SMMP, www.smmp.pt)
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