A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O PROCESSO DISCIPLINAR ADMINISTRATIVO
Um dos direitos fundamentais pessoais consagrados na Constituição da República Portuguesa, em vigor, é o da presunção de inocência em relação a cargas acusatórias ou decisórias de ilícitos imputados, criminal ou disciplinarmente, a um cidadão, em geral, quanto aos criminais, e a funcionário público ou Magistrado, judicial ou do Ministério Público, quantos aos disciplinares.
Tal direito fundamental está consagrado no artº32º, nº 2 da Constituição referida, que reza:
“Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Isto é, para fins jurídicos, todo o arguido é inocente, a não ser que tenha contra ele uma condenação judicial transitada em julgado.
Decisão transitada em julgado significa que já não é passível de recurso ordinário, isto é, que está consolidada na ordem jurídica (NOTA: também há recursos extraordinários, que se podem interpor de sentenças transitadas em julgado e que podem levar à revogação ou alteração destas, mas são casos excepcionais que, no caso e dada a brevidade de espaço, não relevaremos).
Vale isto dizer que, havendo uma carga de factos ilícitos imputados nos termos supra referidos, todo o visado é considerado juridicamente inocente, até que a decisão judicial ou meramente administrativa (e esta só se pode verificar no processo disciplinar) transite em julgado.
Se não há dúvidas de que tal preceito constitucional é directamente aplicável nos processos criminais, a boa Doutrina e Jurisprudência têm por uniforme e assente que o mesmo também é aplicável ao processo disciplinar administrativo.
Por outro lado, muitos casos há em que, no decurso do processo criminal, a carga indiciária de factos ilícitos contra o arguido é tão forte que, se aquele direito fundamental fosse absoluto, o Estado poderia ver o seu poder punitivo esvaziado e sem concretização prática.
Pense-se, por exemplo, no caso de um homicídio voluntário consumado em que o arguido em liberdade pode causar graves tumultos populares ou justificados receios de fuga daquele ou que este, em liberdade, pode destruir ou ocultar provas determinantes para a boa reconstituição dos factos.
Para casos graves (pena aplicável superior a 3 (três) anos) e em que aquela carga indiciária de factos ilícitos dolosos contra os arguidos é forte e verificados outros elementos, como os referidos, de perigo de fuga do arguido, perturbação do inquérito ou mesmo perigo de continuação da actividade criminosa daquele, pode ser aplicada judicialmente ao arguido medida cautelar de prisão preventiva, para assegurar os fins punitivos do Estado. (NOTA: estão previstas legalmente outras medidas cautelares para além da prisão preventiva mas não as abordaremos aqui, sendo esta um paradigma, por ser a mais gravosa).
Esta medida cautelar já foi sindicada pelo Tribunal Constitucional, designadamente no seu Acórdão nº 1166/96, de 20 de Novembro que concluiu pela sua constitucionalidade.
Tal medida cautelar está, porém, sujeita a prazos que não podem ser ultrapassados (cfr. arts. 215º a 217º do Código de Processo Penal) e, se ultrapassados, pode o arguido requerer habeas corpus ao STJ para sua imediata libertação.
Vigorando, pois, o direito fundamental de presunção de inocência, mesmo que o arguido tenha sido condenado, o recurso que for interposto da decisão condenatória, tem efeito suspensivo (cfr. artº 408º, nº 1, a) do Código de Processo Pena), isto é, não pode ser executada a condenação até que seja conhecido tal recurso e, mais, que haja trânsito em julgado da sentença de condenação.
Isto é assim no processo criminal, como resulta claramente da lei ordinária.
Mas, e no processo disciplinar administrativo?
Neste domínio, porém, é que a porca torce o rabo.
A lei ordinária trata a carga de factos ilícitos administrativos contra o arguido como trata a generalidade dos actos administrativos e não faz (presentemente) grande distinção entre eles.
Ou seja:
Os actos administrativos em geral (contrapostos aos punitivos) gozam do chamado privilégio da execução prévia, isto é, executam-se imediatamente após a sua prática, independentemente do seu trânsito em julgado.
Compreende-se que assim seja, dado que de outro modo a Administração não poderia promover o interesse público e urgente que a generalidade de tais actos requer, ficando paralisada enquanto tais actos eram apreciados e decididos contenciosamente.
Se o particular for afectado ilegalmente, desproporcionadamente ou indevidamente por um acto administrativo genérico, pode interpor providência cautelar junto do Tribunal Administrativo competente, pedindo a suspensão da execução administrativa de tal acto.
Tal providência cautelar (processo urgente) tem efeito suspensivo até à sua decisão contenciosa, excepto se a Administração, em resolução fundamentada, invocar o interesse público, afastando tal efeito suspensivo.
Tudo isto é, genericamente correcto para a generalidade dos actos administrativos.
Mas não o é, a meu ver, para os actos administrativos punitivos!
Simplesmente porque, quanto aos actos administrativos punitivos, tal regime geral briga e é, a meu ver, incompatível com o direito fundamental constitucional de presunção de inocência.
Com efeito, os recursos contenciosos (hoje acções especiais de impugnação) das decisões administrativas punitivas têm efeito meramente devolutivo, isto é, as decisões administrativas punitivas executam-se imediatamente, nos termos do regime geral, que vimos acima.
Confronte-se, a este propósito, os arts. 74º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos, 170º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (com a ressalva feita infra) e 33º do Estatuto do Ministério Público.
Quanto aos referidos actos administrativos punitivos, a Administração tem um meio de garantir que o interesse público não seja afectado pelos factos ilícitos indiciados contra o arguido, lançando mão da providência cautelar provisória de suspensão de funções do funcionário ou Magistrado arguido (NOTA: não confundir esta providência provisória com a pena de suspensão, sendo a primeira paralela à prisão preventiva no processo crime e a segunda uma pena disciplinar punitiva).
Tomemos o exemplo de um funcionário público, Magistrado judicial ou do Ministério Público, a quem foi aplicada a pena de demissão.
Qualquer deles fica imediatamente desvinculado totalmente da função pública, com perda de vencimento e de qualquer outro benefício ou regalia.
Isto vai contra o seu direito à presunção de inocência.
Para o regime ser constitucional, a Administração ou os Conselhos Superiores da Magistratura ou do Ministério Público, querendo salvaguardar o interesse público, apenas poderiam lançar mão da providência cautelar preventiva de suspensão de funções (que não pode ser superior a 90 dias, quanto aos funcionários públicos – artº 54º do seu Estatuto – ou de 180 dias, prorrogável excepcionalmente por mais 90 dias, quanto aos Magistrados judiciais - por força do artº 116º do seu Estatuto - e de 180 dias, prorrogável justificadamente por mais 60 dias, quanto aos Magistrados do MP - “ex vi” do artº 196º do seu Estatuto) sendo garantidas as remunerações de função e demais regalias daqueles, punidos sem trânsito em julgado.
Dir-se-á que os prazos da medida preventiva de suspensão de funções são muito curtos, dada a morosidade das decisões judiciais conhecidas no contencioso disciplinar.
Quanto a isso, diga-se que a Lei deve ser mudada, mantendo-se eventualmente tais prazos até à decisão punitiva administrativa e aumentando-se tais prazos, razoavelmente, em sede de recurso contencioso.
Salvaguardada uma ressalva quanto ao regime dos Magistrados judiciais – que têm, neste campo, um regime mais próximo da Constituição (cfr. o artº 170º do seu Estatuto, em que o Magistrado judicial punido disciplinarmente pode requerer, em certas condições, a suspensão da eficácia do acto punitivo, sempre sem abranger a suspensão de funções) -, o regime legal dos actos administrativos punitivos, designadamente quanto aos funcionários públicos e Magistrados do Ministério, seguindo o regime geral da generalidades dos actos administrativos, é, a meu ver, manifestamente inconstitucional, por violação do artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
E já agora: porque é que o regime legal dos Magistrados judiciais não é aplicável aos Magistrados do Ministério Público, dado o paralelismo dos Estatutos?
Responda quem souber!
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