sexta-feira, março 23, 2018

O EFEITO LUCÍFER…

«Há um aspecto burocrático da maldade (além de outro, mais emocional e catártico), uma espécie de dever, uma vivência insensibilizada e fria, que será talvez mais perigosa pois é de uma eficácia quotidiana, fabril e constante. É uma maldade que não se limita a uma explosão episódica de violência. Agimos, muitas vezes sem sentir responsabilidade pelo acto em si ou pelas suas consequências, porque fomos ordenados a fazê-lo, é nosso dever fazê-lo, e a nossa acção fica defendida pela responsabilidade de um outro ou de uma ideia outra. Um homem insignificante poderá cometer, sem que se sinta responsável, crimes hediondos, bastando que, sob a aparência de um bem maior, uma qualquer «verdade» social, política, filosófica, científica ou financeira, passe a sentir que o que faz é uma necessidade e a única maneira de agir. No final, poderá exibir orgulhosamente o resultado do seu crime.
«Com a ajuda de um ambiente social propício, que o incite a cumprir o seu papel, a obediência torna-se mais fácil. E quantas mais pessoas obedecerem, mais difícil se torna a desobediência de um só, porque ir contra essa massa de gente exige um acto de bravura e heroísmo em que a própria vida estará automaticamente em risco.
«Mas a «banalização do mal», expressão cunhada por Hannah Arendt, não era a questão de o mal se tornar algo corriqueiro ou trivial (o que não deixa de acontecer) mas sim o facto de surgir e ser executado por pessoas banais e não por monstros mitológicos. Phiplip Zimbardo desenvolveu uma experiência psicológica, no início dos anos setenta, na qual vinte e quatro jovens (sem qualquer problema psicológico ou criminal) encarnavam, metade deles, o papel de carcereiros e a outra metade, o de prisioneiros. A experiência foi interrompida após seis dias – era para ter durado duas semanas – porque a crueldade e a violência e a desumanização que se verificaram foram tão aberrantes que não houve outra hipótese senão cancelar a experiência. Pessoas absolutamente normais, como a maioria de nós, que jamais reconheceriam, se lhes perguntassem, serem capazes de tais actos, acabaram por demonstrar como somos vulneráveis às circunstâncias e aos papéis sociais que nos são atribuídos. Qualquer pessoa, por mais bondosa que se considere, poderá facilmente converter-se no mais hediondo dos algozes. Zimbardo chamou a este fenómeno Efeito Lucífer.»
(In “JALAN JALAN, UMA LEITURA DO MUNDO”, de Afonso Cruz, Companhia das Letras, págs. 627 e 631)
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