domingo, setembro 15, 2019

O HOMEM REVOLTADO…

«O que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Recusa, mas não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. Um escravo, que recebeu ordens durante toda a vida, de repente considera inaceitável mais uma nova obrigação. Qual o significado deste «não»?
«Significa, por exemplo, «as coisas duraram demasiado tempo», «até aqui, sim, mais além, não», «está a ir longe de mais», e ainda «há um limite que não poderá ser ultrapassado». Em resumo, esse «não» afirma a existência de uma fronteira. Encontramos a mesma ideia de limite neste sentimento do revoltado, de que o outro «exagera», que estende o seu direito para além de uma fronteira a partir da qual um outro direito lhe faz frente e o limita. Deste modo, o movimento de revolta apoia-se, simultaneamente, sobre a recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e sobre a certeza confusa de um direito justo – mais exatamente, no caso do revoltado, uma sensação de que há um «direito de…». A revolta não existe sem o sentimento de ter, de algum modo e em algum lugar, razão. É por isso que o escravo revoltado diz, em simultâneo, sim e não. Ao mesmo tempo que defende a fronteira, defende tudo aquilo que pressente e quer preservar aquém da fronteira. Demonstra, com obstinação, que há nele alguma coisa que «vale a pena», que pede que lhe prestemos atenção. De certo modo, opõe à ordem que o oprime uma espécie de direito a não ser oprimido para além do que ele pode admitir.
«Tal como é repentina a repulsa em relação a um intruso, também na revolta existe uma afirmação completa e imediata do homem a uma parte de si próprio. Ele faz intervir, implicitamente, um juízo de valor, nada gratuito, pois é aquilo que o sustenta no meio dos perigos. Até então, o máximo que fazia era ficar calado, abandonado àquele desespero no qual se aceita uma condição, ainda que a julguemos injusta. Calar-se é deixar crer que não julgamos nem desejamos nada e, em certos casos, é de facto um não desejar nada. O desespero, como o absurdo, julga e deseja tudo em geral, e nada em particular. É o silêncio que o traduz bem. Mas a partir do momento em que fala, mesmo dizendo não, deseja e julga. O revoltado, no seu sentido etimológico, faz uma reviravolta. Marchava ao ritmo do chicote do senhor. Ei-lo agora que lhe faz frente. Opõe o que é preferível ao que não o é. Nem todo o valor implica revolta, mas todo o movimento de revolta invoca tacitamente um valor. Será que se trata, pelo menos, de um valor?
«Ainda que possa ser confusa, do movimento de revolta nasce uma tomada de consciência: a perceção, de repente gritante, de que existe no ser humano alguma coisa com a qual ele pode identificar-se, mesmo que temporariamente. Até agora, essa identificação não era verdadeiramente sentida. Todas as violências anteriores ao movimento de insurreição, era o escravo que as sofria. Muitas vezes terá recebido, sem reagir, ordens mais revoltantes do que aquela que agora desencadeou a sua recusa. Enchia-se de paciência, talvez em si as rejeitasse, mas, como se calava, estaria ainda mais preocupado com o seu interesse imediato do que consciente dos seus direitos. Com a perda da paciência, com a impaciência, pelo contrário, tem início um movimento que pode estender-se a tudo aquilo que anteriormente era aceite. Este impulso é quase sempre retroativo. O escravo, no instante em que rejeita a ordem humilhante do seu superior, rejeita ao mesmo tempo o próprio estado de escravidão. O movimento de revolta leva-o mais longe do que a simples recusa em que se encontrava. Chega mesmo a ultrapassar o limite que fixara ao seu adversário, exigindo agora ser tratado como igual. O que, primeiramente, era uma resistência irredutível característica do homem, transforma-se no próprio homem, agora completamente identificado com ela e que a ela se resume. Ele coloca acima de tudo essa parte de si que quer fazer respeitar, e considera-a preferível a tudo, mesmo à própria vida. Torna-se para ele o bem supremo. Anteriormente preso num compromisso, o escravo atira-se, repentinamente («já que é assim…»), para o Tudo ou Nada. A consciência emerge com a revolta.
«Mas percebemos que ela é, ao mesmo tempo, consciência de um «tudo», ainda bastante obscuro, e de um «nada» que anuncia a possibilidade de sacrifício do homem a esse tudo. O revoltado quer ser tudo – identificar-se totalmente com esse bem de que, de repente, tomou consciência, e que deseja ver reconhecido e saudado na sua pessoa – ou ser nada, isto é, ver-se definitivamente expulso pela força que o domina. No limite, aceita a expulsão última, que é a morte, se tiver de ser privado dessa consagração exclusiva, a que chamará, por exemplo, a sua liberdade. Antes morrer de pé do que viver de joelhos.»
(In “O Homem Revoltado”, de Albert Camus, Livros do Brasil, págs. 27 a 29)
- Victor Rosa de Freitas –

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