quinta-feira, agosto 29, 2019

A TIRANIA “DEMOCRÁTICA”…

«(…) não bastará dizer que os sujeitos obedecem porque, precisamente, são submissos, isto é: constrangidos pela força, prisioneiros do medo? Contudo, se existe uma relação de forças, esta é desfavorável ao tirano, como acabámos de dizer: um contra a multidão - «um» só homem, que não é um semideus dotado de uma força hercúlea, que não é um prodígio de força. Mas esse homem «só» tem, ainda assim, à sua disposição, forças armadas, uma polícia, uma justiça de classe, censores profissionais, delatores. É então que, no texto, o uso do «vós» se agudiza:
«”Onde iria ele buscar os olhos com que vos espiam se vós não lhos désseis?
«”Onde teria ele mãos para vos espancar se não tivesse as vossas?
«”Os pés com que esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos?”
«Contudo, ao afirmarmos que é entre o povo que são recrutados os espiões, os guardiães da ordem, os oficiais de justiça, apenas adiamos a questão. Porque, também quanto a isto, podemos dizer: ora bem, devem aperceber-se de que a tirania é construída por uma submissão piramidal. Cada qual obedece medrosamente ao seu superior hierárquico, e isso desenvolve-se de baixo para cima, até chegar ao tirano, que é o único que manda. Mas a representação vertical camufla a cadeia horizontal de cumplicidades e o papel da solidariedade inebriada que cada um desempenha num regime tirânico. Aceitamos ser tiranizados sobretudo porque isso nos proporciona o prazer de fazer de outrem o tirano: «O tirano submete uns por intermédio dos outros.» Aquilo que sustenta a tirania é a sua estrutura «democrática». Cada tiranizado vinga-se da sua condição sendo, por sua vez, tirânico com outrem, de maneira que a relação de obediência, em vez de formar dois grupos distintos (governantes/governados), perpassa todo o corpo social, e todos são cúmplices, desempenhando cada um o seu papel prazeroso ao ter autorização para se tornar o tirano de outrem.»
(In “DESOBEDECER”, de Frédéric Gros, ANTÍGONA, págs. 46 e 47)
- Victor Rosa de Freitas –

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