terça-feira, março 05, 2019

NÃO HÁ CONFLITO ENTRE O BEM E O MAL – BUSCA, ANTES, A VERDADE…

« - Eu sei o que sou e sei… coisas – tartamudeei. Sentia-me desafiador, como se o desafio me salvasse da vergonha. – Tenho conhecimento acerca do mundo em que vivo e sei que o bem tem de lutar sempre contra o mal.
« - Ah! – disse ele com um brilho de emoção. – O bem contra o mal, sim! O milenar conflito humano! Vês este conflito no resto do universo? Vês o bem e o mal a lutarem nos bosques e nos pomares? As árvores estão ansiosas por causa dos males do mundo? E os animais? Os peixes? As aves? As criaturas da Terra preocupam-se com as questões do bem e do mal?
« - É evidente que não.
« - É evidente que não? Então onde existe esse conflito?
«Era um truque? Estava decidido a fazer-me passar por tolo?
« - Na espécie humana – respondi com desconfiança.
« - Na mente humana!
« - Bem, sim,,, e não há nada mais nobre do que a mente dos homens – acrescentei com presunção. – Se os animais…
« - Se os animais pudessem pensar, estariam tão preocupados com o mal como nós? Espero que não, para o seu próprio bem.
«Rimo-nos os dois e depois ficámos calados durante algum tempo.
« - Miguel – disse ele quando sentiu que as minhas defesas estavam mais fracas -, o conflito de que falas existe na mente humana e, na realidade, não é um conflito entre o bem e o mal; é um conflito entre a verdade e as mentiras. Quando acreditamos na verdade, sentimo-nos bem e a nossa vida é boa. Quando acreditamos nas coisas que não são verdade, coisas que incentivam o medo e o ódio dentro de nós, o resultado é o fanatismo. O resultado é o que as pessoas reconhecem como o mal, as más palavras, más intenções, más ações. Toda a violência e todo o sofrimento do mundo são o resultado direto de muitas mentiras que contamos a nós mesmos.
«De repente lembrei-me das palavras de um grande filósofo: “Os homens são atormentados pelas suas opiniões das coisas, não pelas coisas em si mesmas”. Não me lembrava de onde tinha lido aquela citação nem quem a tinha dito. Um alemão, talvez. Não, um francês.
« - Miguel, para – disse Dom Leonardo com severidade, arrancando-me da minha obsessão. – Para, por favor – repetiu, agora com mais paciência. – Os grandes pensamentos deviam ser aplicados, não catalogados. O privilégio do conhecimento é servir a mensagem da vida. O conhecimento só por si não é nenhuma mensagem. Se estiver no comando, põe-nos loucos.
«Apercebi-me de que ele tinha razão. Passados uns segundos, disse-lho, e ele recostou-se na sua espreguiçadeira e ficou a olhar para mim durante muito tempo, a refletir. Eu pensava que a conversa tinha acabado e que me deixaria livre por ter concordado com ele. Poderia ir buscar uma “empanada” à cozinha, despedir-me e voltar para a cidade, onde as pessoas me admiravam pela minha inteligência e pela minha subtileza-
« - Miguel – disse ele com uma expressão tão séria que fiquei a saber que não ia a lado nenhum -, vejo que estás a esforçar-te imenso por me impressionar, por demonstrar que é suficientemente bom para mim, e eu compreendo. Precisas de fazer isso porque ainda não és suficientemente bom para ti mesmo.
«Senti os olhos a encherem-se de lágrimas. Apercebi-me logo de que os meus esforços determinados para parecer seguro de mim mesmo foram uma perda de tempo. Todas as minhas opiniões e certezas ocultavam o medo de não ser suficientemente sábio ou esperto. Dom Leonardo via mais do que eu e sabia mais acerca de mim mesmo do que eu estava disposto a descobrir. Desviei o olhar, incapaz de enfrentar a verdade dos seus olhos penetrantes. Na verdade desviei o olhar – mas fiquei onde estava. Fiquei com ele, a ouvir.
«Naquela tarde, contou-me muitas coisas e demorei uma vida inteira a digerira nossa conversa. O que cada um de nós deseja acima de tudo é a verdade, que não pode ser dita com palavras. Tal como todos, tal como tudo, a verdade é um mistério disfarçado de resposta. As letras que aprendi na escola apontam para revelações que, por sua vez, apontam de novo para o mistério. A verdade existiu antes das palavras, antes da humanidade e antes deste universo conhecido. A verdade existirá sempre, e a linguagem foi criada para ser a sua serva. As palavras são as ferramentas da nossa arte, ajudam-nos a pintar imagens da verdade sobre uma tela mental. Que espécie de artistas somos? Que espécie de artistas desejamos ser? E estamos dispostos a renunciar às coisas sem sentido em que acreditamos para nos convertermos nesses artistas?
«O meu avô disse-me que o meu maior poder era a fé. Dependia de mim orientar esse poder sabiamente. O mundo estava cheio de pessoas ansiosas por depositar a sua fé numa ideia, numa opinião, nas opiniões de outras pessoas. Instou-me a não investir a minha fé no conhecimento, mas a investi-la em mim mesmo. Embora não me tivesse apercebido disso na altura, a nossa conversa daquela tarde colocou-me num caminho que jamais abandonaria. A partir daquele momento, quis encontrar sentido nas coisas. Queria compreender-me a mim mesmo e descobrir como tinha começado a crer em mentiras. Procurar respostas estava na minha natureza. Está na natureza de todos encontrar a verdade, e procurá-la-emos ansiosamente em qualquer lado, em todo o lado, exceto em nós mesmos.
«Depois daquele dia, só desejava a verdade e, ao princípio, para me orientar só tinha as recordações – recordações baseadas em imagens e em histórias aleatórias que conduziam a mais distorções. Mas isso foi só o princípio. Como as coisas viriam a mudar depressa para mim! Como é generosa a verdade quando estamos dispostos a segui-la, a aceitá-la e a sentirmo-nos gratos por ela.»
(In “A ARTE TOLTECA DA VIDA E DA MORTE”, de Don Miguel Ruiz & Barbara Emrys, NASCENTE, págs. 82 a 85)

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