segunda-feira, junho 01, 2015

A VERSÃO DE ISALTINO MORAIS SOBRE A JUSTIÇA PORTUGUESA...


«Se tivesse havido no meu processo uma ou duas singularidades, um ou outro desvio às práticas estabelecidas, teria de admitir que elas poderiam ter tido geração espontânea, como têm geração espontânea os múltiplos erros e falácias inerentes a qualquer sistema humano de avaliação de factos e de aplicação do direito. Errar é humano, e os juízes são tão humanos como todos os demais. Mas o número de absurdos jurídicos e de desvios às soluções estabelecidas, que se registaram em catadupa nos 16 meses em que os tribunais debitaram decisões sobre decisões no sentido de me conduzirem ao cárcere, não foram inocentes. O sistema jurisdicional funcionou em bloco para fazer prevalecer uma prisão imerecida, injustificada e ilegal. Os "media" condenaram-me, e os tribunais limitaram-se a fazer cumprir essa condenação.
«O que quer que eu pudesse invocar em minha defesa estava antecipadamente destinado a ser desconsiderado. Pior: a própria invocação do meu direito a defender-me, a junção das provas da inexistência de qualquer dívida fiscal regularmente apurada, a demonstração do decurso dos prazos para a extinção da pretensão punitiva do Estado, o pedido para o cumprimento do anteriormente decidido - ou, ao menos, para o Supremo Tribunal julgar a contradição de julgados -, tudo era denunciado como abusivo, tudo era liminar e expeditamente arredado como manobras, expedientes, artimanhas processuais.
«O que os tribunais - com uma ou outra exceção - me negaram, não foi apenas um julgamento objetivo e imparcial: foi o próprio direito de defesa.
«Embora tivesse cumprido pena com os condenados do caso Casa Pia, não partilhei com eles relatos processuais. Não sei em que medida a condenação deles seguiu regras estabelecidas ou estabeleceu exceções. Mas sei que foi no processo deles que se estabeleceram novos limites ao arbítrio acusatório do Ministério Público: até aí, não era sequer necessário comunicar a um acusado de que era concretamente acusado para se considerar que o seu direito de defesa estava salvaguardado! No meu processo, ao invés, os tribunais colaboraram diligente e empenhadamente com as pretensões do Ministério Público, e chegaram a avaliar retroativamente a prescrição para evitar declará-la!
«Sei que, dentro do que aconteceu no meu processo, nunca mais deixarei de dar o benefício da dúvida a quem quer que a justiça portuguesa condene. E pode bem ser, à luz dos novos casos com que ela se «ilustra», que o meu caso tenha sido apenas o primeiro de muitos. O preço de todas as decisões que condenam mal é a intranquilidade que induzem em relação a todas as demais.
«Com tudo o que nos separa, recordo que o mesmo Ministério Público que me perseguiu perseguiu a Dr.ª Leonor Beleza até ao limite. Ambos tivemos contra nós campanhas ferozes dos meios de comunicação social. No caso dela, porém, o Tribunal Constitucional funcionou, e - por causa disso - o procedimento criminal foi julgado prescrito. No meu caso, o Tribunal Constitucional fez tudo o que pôde (e até mesmo o que não podia) para evitar que a prescrição sobreviesse. E depois de ela ter ocorrido fez tudo o que pôde para que ela não fosse reconhecida. Mas é verdade: nem eu sou a Dr.ª Leonor Beleza, nem o Tribunal Constitucional que julgou o processo dela tem alguma coisa a ver com o Tribunal Constitucional que julgou o meu caso.
«Chegados ao tempo das cinzas, o que ficou então da fogueira em que me imolaram?
«Em Oeiras, nada: sob a bandeira do meu nome - o nome de um condenado, preso e impedido de se candidatar -, o movimento político que fundei derrotou esmagadoramente todos os partidos políticos e as suas candidaturas impolutas.
«O procurador do Ministério Público que fez tudo para me prender, mesmo tornar a prisão irreversível quando uma sua colega já me dera razão, há de ser recordado por ter sido afastado do Centro de Estudos Judiciários por se ter mostrado indiferente ao copianço nas provas dos futuros magistrados. E há de ser recordado por ter conseguido persuadir os tribunais a prender-me. Não com glória, mas com vergonha.
«É que nos anais da História ficarão as manchetes dos pasquins e as decisões dos tribunais que tudo farei para conservar e mostrar a todos: eu, o condenado, o aviltado por umas e por outras. Vistas por um observador imparcial - para vergonha de uns ou de outros, mas não minha - parecerão estranhamente iguais.»
(In "A MINHA PRISÃO", de Isaltino Morais, Esfera dos Livros, págs. 479 a 481)
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