domingo, dezembro 07, 2014

CARISMA, BUROCRATIZAÇÃO DO PODER E TOTALITARISMO...


«Os grupos sociais não vêem inconveniente em outorgar poder social àquelas pessoas que sobressaem, por terem um carisma ou um dom que as torna especiais e superiores em algum aspecto da vida. É o caso dos grandes generais, como Napoleão, ou dos governantes excepcionais, ou, no caso da cultura, dos grandes poetas, ou músicos, etc. É fácil conceder o lugar de líder a quem exibe qualidades que o situam muito acima da generalidade. Os dons, os carismas, são qualidades que colocam automaticamente certas pessoas acima das outras.
«No caso concreto das religiões, não há dúvidas de que todas tiveram na sua origem um carismático de profunda experiência religiosa. Se isto não tivesse sido assim, essas religiões não teriam surgido. O problema do carisma é que tem carácter pessoal e intransferível, de tal modo que morre com o próprio carismático. O carisma não se herda. Daí que, com a morte do carismático, os seus seguidores procuram gerir o poder não no seu próprio nome, mas no do carismático, legitimando-se não em virtude das suas próprias qualidades, mas das qualidades do carismático, das quais se consideram herdeiros. É o tipo de gestão do poder que Weber denomina «tradicional». Isto aconteceu em todas as dinastias, tanto religiosas como civis. Não é preciso dizer que os seguidores do carismático carecem da personalidade forte e da capacidade de arrastar multidões do fundador, razão pela qual têm de compensar essa falta de espontaneidade com um incremento proporcional das regras e das normas, de tal modo que agora actuará correctamente não quem viva o carisma mas quem cumpra as regras estabelecidas. Diminui o impulso criativo e interno e aumenta o controlo repressivo e externo.
«Mas as coisas não terminam aí. Weber comprovou isto, analisando a evolução do maior poder social existente no mundo moderno, o próprio do Estado. Num determinado momento da sua evolução, o poder tradicional evolui para outro tipo, o último, que Weber denomina «burocrático». Este é o fim natural a que conduz, provavelmente de modo necessário, a gestão tradicional do poder. As regulamentações crescem cada vez mais e o carisma vai-se perdendo progressivamente na distância. Pouco a pouco, a gestão do poder impersonaliza-se completamente. É nisto que consiste a burocracia. De certo modo, a gestão tradicional é uma fase intermédia entre a carismática, estritamente pessoal, e a burocrática, completamente impessoal. O exemplo paradigmático de instituição burocrática é o Estado moderno. Trata-se de uma instituição com personalidade jurídica, mas sem rosto físico. Isto torna-o profundamente impessoal. O Estado não é ninguém em concreto, de tal modo que quem gere o seu poder o faz temporariamente, e, além disso, não pode identificar-se com a instituição, neste caso o Estado. O Estado é uma coisa, e os seus gestores, aqueles que detêm o seu poder, são outra muito diferente. O Estado não é ninguém pessoal, é a impersonalização pura, uma realidade sem rosto e, em última análise, sem consciência. Tem personalidade jurídica mas carece de personalidade moral. Hannah Arendt defendeu num livro célebre, "The Originis of Totalitarianism", a tese de que a burocratização do poder conduz necessariamente à despersonalização dos cidadãos e, como consequência disto, ao totalitarismo.»
Diego Gracia - Médico, filósofo, bioeticista. Universidade Complutense, Madrid.
(In "DEUS AINDA TEM FUTURO?", coordenação de Anselmo Borges, Gradiva, págs. 239 a 241)
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