quarta-feira, novembro 19, 2014

CORRUPÇÃO NO ESTADO...


«É sabido que a Economia informal é estimada por vários critérios em cerca de 25 por cento do PIB, cerca de 40 mil milhões de euros. Se fosse tributada a uma taxa média de 33 por cento, uma taxa conservadora porque a carga fiscal em Portugal é superior, a receita fiscal respectiva seria de cerca de 13 mil milhões de euros. Ora, com esta receita, o défice deixaria automaticamente de existir.
«(...)
«Tudo o que se puder melhorar no combate à criminalidade organizada que viola leis objectivas, promove e beneficia da corrupção, branqueia capitais e foge ao fisco, é um serviço inestimável que se presta ao país. E depende de vós, os presentes nesta sala, que são os titulares da acção penal e que representam o poder judicial, melhorar esse combate.
«Mas no caso dos crimes de corrupção moral praticados no nosso país, que se traduziram em muitos milhares de milhões de aumento da dívida pública, desenganem-se, não podem fazer quase nada. Só o poder legislativo poderia ter prevenido esse tipo de criminalidade moral.
«Mais do que isso, foi o poder legislativo que criou todas as leis para que esta corrupção pudesse acontecer.
«Vou concretizar:
«Foi legal e absolutamente imoral o Estado ter posto fora do seu balanço e atribuído a privados um gigantesco programa de investimento público disfarçado em parcerias público-privadas rodoviárias, ferroviárias, portuárias, de comunicações e de saúde, que vai custar aos contribuintes 33 mil milhões de euros até 2042 e gerar uma fatia de lucros fabulosos aos concessionários.
«Foi legal e absolutamente imoral o legislador ter aprovado diplomas que permitiram a autarquias a concessão a privados de dezenas de parcerias para a distribuição de água cujos preços dispararam logo a seguir e, pelo menos num caso, resultaram num pedido de compensação superior a 100 milhões de euros porque o consumo ficou abaixo do previsto nos contratos.
«Foi legal e absolutamente imoral o Estado português ter prolongado em 2007 os contratos de concessão de barragens da maior produtora de electricidade por mais 15 a 25 anos, contra o pagamento de apenas 700 milhões de euros. Os próprios bancos de investimento, que normalmente apoiam os grupos económicos nestas operações, diziam que o valor real era três vezes superior, 2,1 mil milhões de euros.
«Foi legal e absolutamente imoral atribuir aos produtores de electricidade em regime ordinário compensações chorudas para não produzirem, para terem potência disponível sem ser usada, enquanto passaram a receber, para produzir em regime especial, subsídios dos mais elevados do mundo à custa de todos nós.
«Foi legal e absolutamente imoral dar aos produtores de electricidade a possibilidade de aumentarem os preços quando o consumo do país baixar. Que estranha noção de mercado!
«São os mesmo que querem construir linhas de alta tensão para o Algarve e o Minho, quando o país já não consegue pagar a energia de que precisa, apenas porque os investimentos (com dinheiro, pedido no exterior que agrava a situação externa do país) têm garantias de rendibilidade de 8,5 por cento protegida por lei. Este é um claro crime económico com carimbo de Estado aprovado no Parlamento.
«Foi legal e absolutamente imoral a aprovação de leis que permitiram a liberalização da venda de combustíveis líquidos, gás natural e de botija, cujos preços agora estão sistematicamente muito acima da média europeia, sem razão técnica comercial ou financeira nenhuma, quando antes estavam sistematicamente abaixo da média europeia.
«Foi legal, e aparentemente bem-intencionada, a legislação que permitiu a liberalização das telecomunicações mas que deixou os preços de pacotes de minutos ultrapassarem 20, 30, 40 por cento da média europeia.
«Tudo isto é legal, tudo isto é um saque de algumas corporações às famílias e às empresas, é um crime económico de proporções gigantescas.
«Todo este enquadramento legal gerou uma tragédia nas contas públicas e no endividamento público e externo do país.
«Estes resultados não aconteceram por acaso.
«Não foi apenas um bando de governantes irresponsáveis que propôs inocentemente e outro bando de deputados inocentes aprovou.
«Foi bem mais do que isso.
«Houve calculismo, houve conivência, houve conluio, houve interesse próprio.
«E houve enriquecimento súbito de muita gente, sem ninguém fazer perguntas.
«Não só porque as leis que enquadram a actividade económica os favoreceram mas também porque as leis penais e processuais penais que poderiam impedir uma investigação eficaz a eventuais ilegalidades foram alteradas, para a Justiça não incomodar os protagonistas destes negócios.
«Além disso, os próprios interpretadores das leis e os aplicadores da Justiça optaram pelo encolher de ombros quando alguma dúvida ténue lhes assaltou o espírito.
«Bem que poderiam ter procurado uma alínea dos novos diplomas, um diploma esquecido mas ainda em vigor, algo que permitisse investigar, julgar e punir para promover o interesse do país.
«Durante muito tempo, perguntei-me porque é que as investigações aos casos das PPP não avançavam: porque é que não foi lançado uma mega-investigação ao sector da energia que gera lucros excessivos e rendas escandalosas.
«Finalmente, há poucos meses percebi...
«Bastou-me, para isso, ver os anteriores titulares da Procuradoria-Geral da República e do Supremo Tribunal de Justiça, sentados na primeira fila na cerimónia de apresentação de um certo livro de um certo ex-primeiro ministro.
«Há coisas que, realmente, agora fazem muito sentido, bate tudo certo, nada acontece por acaso...
«Para desfazer estas negociatas legais e absolutamente imorais, para acabar com esta corrupção de Estado ao mais alto nível, só há uma solução: levar o Parlamento a legislar para desfazer estes negócios da nossa vergonha.
«O problema é que muitos dos que aprovaram as leis que permitiram estes negócios ainda estão no Parlamento. Ou trabalham em escritórios de advogados que têm colegas que são deputados no Parlamento.
«São os mesmo que têm feito tudo para impedir a criação da figura penal do enriquecimento ilícito com a respectiva criminalização, que é urgente e imprescindível para salvar a democracia portuguesa.
«São os mesmos que impedem a criação de leis que obriguem os beneficiários a devolver imediatamente o património acumulado ao erário público, em caso de falta de explicação da sua origem, mesmo que não cheguem a ser incriminados.
«Todos nós, enquanto cidadãos, devemos exigir ao Parlamento que aprove uma lei muito clara que obrigue os titulares de cargos políticos a devolverem integralmente os acréscimos de património ao Estado, quando não são devidamente justificados.
«Não chega serem obrigados a pagar apenas os impostos correspondentes quando são apanhados pelo fisco. Assim o crime compensa sempre. É fazer o crime e ficar à espera de escapar. É a diferença entre pagar zero e pagar o imposto, nunca perder o que se ganhou injustificadamente.»
(In "CARTA A UM BOM PORTUGUÊS", de José Gomes Ferreira, Livros d'Hoje, págs. 233 e 234 a 237)
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