segunda-feira, setembro 30, 2019

VIGILÂNCIA MASSIVA E AS PROVAS DE UM CRIME CONVENIENTE…

«Penso muitas vezes no chamado «momento atómico» - uma expressão que em física descreve o momento em que um núcleo atrai os protões e neutrões que giram à sua volta num átomo, mas que é popularmente compreendida como significando o advento da era nuclear, cujos isótopos permitiram progressos na produção de energia, na agricultura, na potabilidade da água e no diagnóstico e tratamento de doenças mortais. E também criou a bomba atómica.
«A tecnologia não tem um juramento de Hipócrates. Inúmeras decisões tomadas por tecnólogos na academia, na indústria, no aparelho militar e no governo desde pelo menos a Revolução Industrial foram-no com base no «podemos», não no «devemos». E a intenção que impulsiona a invenção tecnológica raras vezes, se alguma, limita a sua aplicação e uso.
«Não estou, como é evidente, a comparar as armas nucleares à cibervigilância em termos de custos humanos. Mas há aspectos comuns no que respeita aos conceitos de proliferação e desarmamento.
«Os únicos dois países que, tanto quanto sei, já tinham praticado a vigilância massiva foram esses outros grandes combatentes da Segunda Guerra Mundial – um inimigo da América, outro seu aliado. Tanto na Alemanha nazi como na Rússia soviética, as primeiras indicações públicas dessa vigilância massiva assumiram a forma na aparência inócua de um censo, a contagem oficial e o registo estatístico de uma população. O Primeiro Recenseamento Geral da União Soviética, em 1926, tinha um propósito escondido por detrás de uma mera contagem: perguntava aos cidadãos soviéticos qual era a sua nacionalidade. Os resultados convenceram os russo étnicos, que formavam a elite soviética, de que eram uma minoria quando comparados com as massas agregadas de cidadãos que se reclamavam de uma herança da Ásia Central, como os uzbeques, os cazaques, os tajiques, os turcomanos, os georgianos e os arménios. Esta descoberta reforçou a determinação de Estaline de erradicar essas culturas, «reeducando» as respectivas populações na ideologia desenraizadora do marxismo-leninismo.
«O censo da Alemanha nazi em 1933 tinha um projecto estatístico semelhante, mas dessa vez com a ajuda de tecnologia de computadores. Os nazis queriam contabilizar a população do Reich para poderem controlá-la e purgá-la – sobretudo de judeus e ciganos – antes de dirigirem os seus mortíferos esforços para populações além-fronteiras. Para o conseguir, o Reich fez uma parceria com a Dehomag, uma subsidiária alemã da IBM americana, que detinha a patente do tabulador de cartões perfurados, uma espécie de computador analógico que contava furos feitos em cartões. Cada cidadão era representado por um cartão, e determinados furos nos cartões representavam determinados marcadores de identidade. A coluna 22 tratava da rubrica religião: o furo 1 era protestante, o furo 2 católico e o furo 3 judeu. Em 1933, os nazis ainda viam os judeus não como uma raça. Pouco depois deste censo a informação foi usada para identificar e deportar os judeus da Europa para os campos de extermínio.
«Um único “smartphone” de um modelo vulgar tem mais poder de computação do que a soma de toda a maquinaria usada pelo Reich e pela União Soviética durante a guerra. Ter isto em conta é a maneira mais segura de contextualizar não só a actual predominância tecnológica da CI americana, mas também a ameaça que representa para uma governação democrática. No século, ou quase, que passou desde esses esforços de arrolamento, a tecnologia fez progressos espantosos, mas não se pode dizer o mesmo das leis e dos escrúpulos humanos que poderiam restringi-la.
«Também nos Estados Unidos existe o censo, claro. A Constituição estabeleceu-o e consagrou-o como a contagem oficial da população de cada estado para determinar a respectiva delegação proporcional no Congresso. Era de certo modo um princípio revisionista, na medida em que os governos autoritários, incluindo a monarquia britânica que governava as colónias, sempre tinham usado o recenseamento como um método para calcular os impostos e saber quantos jovens podiam ser recrutados para as fileiras. O génio da Constituição foi redirigir o que sempre tinha sido um mecanismo de opressão para um fim democrático. O censo, que está oficialmente sob a jurisprudência do Senado, devia ser feito de dez em dez anos, que era mais ou menos o tempo que demorava processar os dados de todos os que se seguiram ao primeiro, em 1790. Este intervalo de uma década foi encurtado pelo censo de 1890, que foi o primeiro em todo o mundo a usar computadores (os protótipos dos modelos que a IBM mais tarde venderia à Alemanha nazi). Com a tecnologia de computação, o tempo de processamento foi reduzido a metade.
«A tecnologia digital veio não só facilitar esta contabilidade – tornou-a obsoleta. A vigilância massiva é agora um censo interminável, muito mais perigoso do que qualquer questionário enviado pelo correio. Todos os nossos aparelhos, desde o telefone ao computador, são na essência recenseadores que transportamos nas nossas mochilas e nos nossos bolsos – recenseadores que se lembram de tudo e não perdoam nada.
«O Japão foi o meu momento atómico. Foi lá que compreendi o novo caminho que estas novas tecnologias estavam a tomar, e que se a minha geração não interviesse a escalada só podia continuar. Seria uma tragédia se, quando enfim resolvêssemos resistir, essa resistência já fosse fútil. A próxima geração teria de se habituar a um mundo onde a vigilância não seria qualquer coisa ocasional e directa em circunstâncias legalmente justificadas, mas uma presença constante e indiscriminada: o ouvido que tudo ouve, o olho que tudo vê, uma memória que não dorme nem faz pausas.
«Uma vez que a ubiquidade da recolha fosse combinada com a permanência do armazenamento, tudo o que qualquer governo teria de fazer seria seleccionar uma pessoa ou um grupo de pessoas como bode expiatório e ir procurar – como eu tinha ido procurar nos arquivos da agência – provas de um crime conveniente.»
(In “Vigilância Massiva Registo Permanente”, de Edward Snowden, Grupo Planeta, págs. 223 a 226)
- Victor Rosa de Freitas –

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