sábado, setembro 29, 2018

LENDO PEPETELA…

«Estou morto.
«Estou morto, de olhos cerrados, mas percebo tudo (ou quase) do que acontece à minha volta. Sei, estou deitado dentro de um caixão, num salão cheio de flores, as quais, em vida, me fariam espirrar. As pessoas não sabem que flores de velório cheiram mal? Sabem, mas a tradição é mais forte e velório sem flores é para pobre.
«Ora, não somos pobres, dominamos uma nação.
«Estou morto, no entanto posso escutar, entender os dizeres, mesmo os sussurros e, em alguns casos, adivinhar pensamentos.
«Um grupo cochicha lá atrás da multidão. A distância e outros sons e ideias partilhando o éter não permitem perceber a razão das piadas em surdina, ou estarão a conspirar governos e lideranças, ou a prever o futuro. Esses são inimigos há muito camuflados, pois se divertem ao me verem estirado em fato preto no caixão. É cedo para revelar nomes, mas conheço todos e nenhum me surpreenderá. Sempre os avaliei como hostis, ou a minha polícia política não valeria os altos salários sempre providos a tempo e alguns presentes caros pelo Natal. Deixei-os intrigarem durante anos, eram inócuos. Sem mim na tribuna, talvez ganhem alguma força, daí a alegria deles. Ou o que virá para o meu lugar dá cabo do seu pescoço com um assopro. Uma coisa é certa, no momento do meu enterro, também se prostrarão em soluços, alguns até se ajoelharão, em gesto de órfãos desamparados. E cantarão saudades antecipadas. De preferência diante de jornalistas e televisões.» - págs. 9 e 10.

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