domingo, setembro 16, 2018

A CULTURA DO “PARECER”…

«À distância de quase dois séculos, a imagem de uma sociedade dicotómica, rigidamente dividida em senhores e servos, em ricos exploradores e pobres aviltados como bestas, como a descrevera Padula, já não corresponde, ou quase não corresponde, ao cenário do mundo em que vivemos. Mas ainda resta, de formas muito diferentes e mais sofisticadas, uma supremacia do “ter” sobre o “ser”, uma ditadura do lucro e da posse, que domina todas as áreas do saber e todos os nossos comportamentos quotidianos. “Parecer” conta mais do que “ser”: aquilo que se mostra – um automóvel de luxo ou um relógio de marca, um cargo de prestígio ou um lugar de poder – tem muito mais valor do que a cultura ou o grau de instrução.
«(…)
«Não é por acaso que nas últimas décadas as disciplinas humanísticas são consideradas inúteis, são marginalizadas, não só nos programas escolares como, sobretudo, nas alíneas dos orçamentos de estado e nos recursos de entidades privadas e de fundações. Para quê aplicar dinheiro numa área condenada a não produzir lucro? Para quê aplicar fundos em saberes que não apresentam um rápido e apreciável proveito económico?
«Dentro deste contexto, fundamentado exclusivamente na necessidade de pesar e medir, com base em critérios que privilegiam a “quantitas”, a literatura (mas as mesmas palavras poderiam aplicar-se a outros saberes humanísticos e aos saberes científicos sem um objectivo utilitário imediato) pode pelo contrário assumir uma função fundamental muito importante: justamente por ser imune a qualquer aspiração ao lucro, poderia colocar-se, por si só, como forma de resistência ao egoísmo actual, como antídoto à barbárie do útil, que chegou ao ponto de corromper as nossas relações sociais e os nosso afectos mais íntimos. Com efeito, a sua própria existência chama a atenção para a “gratuidade” e para o “desinteresse”, valores hoje considerados contra-corrente e fora de moda.»
(In “A UTILIDADE DO INÚTIL – MANIFESTO”, de Nuccio Ordine, Faktoria K de Livros, págs. 30 e 31)

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