domingo, setembro 14, 2025

O GABA...

 «Katherine prosseguiu:

« - No modelo da consciência não-local, o cérebro é uma espécie de rádio que “recebe” a consciência e, tal como todos os rádios, tem inúmeras estações a bombardeá-lo o tempo todo. Portanto, consegue perceber de imediato porque é que um rádio precisa de um botão para o sintonizar: um mecanismo que lhe permita escolher “uma” só frequência para receber. O próprio rádio tem capacidade para receber todas as estações, mas, sem uma maneira de filtrar as que capta, tocaria todas as frequências ao mesmo tempo. O cérebro funciona da mesma maneira: tem uma série complexa de filtros para evitar que a mente fique “sobrecarregada” com demasiados estímulos sensoriais… de modo que possa concentrar-se só numa pequena fatia da consciência universal.

«”Faz todo o sentido”, refletiu ele. “A nossa perceção da luz e som é filtrada”. Langdon sabia que a maior parte dos seres humanos não tinha noção de que só experienciava uma pequena fração da gama de frequência prática e do espectro eletromagnético: o resto passava-nos ao largo, para lá dos botões de sintonização. 

« - A atenção seletiva é um excelente exemplo de filtragem do cérebro – disse Katherine. – Chama-se «efeito festa». Imagina-te numa festa cheia de gente com o teu cérebro focado só nas palavras que vêm da pessoa que está a falar contigo e, depois, começas a entediar-te e o teu foco desvia-se naturalmente para uma conversa mais interessante a decorrer noutro ponto da sala. É isso que te permite filtrar o ruído de fundo e não ser subjugado por “todas” as vozes que estão ao alcance dos teus ouvidos.

«”Reuniões da faculdade”, pensou Langdon, que muitas vezes dava por si a sintonizar uma música que tocava lá fora no pátio, enquanto os colegas discutiam o programa ou os horários.

« - O hábito é outro tipo de filtro – continuou Katherine. – O cérebro bloqueia estímulos sensoriais repetidos e fá-lo de maneira tão eficaz que deixamos mesmo de ouvir o zumbido constante do ar condicionado ou de sentir os óculos postos no nariz. Esse filtro é tão poderoso que podemos correr a casa toda à procura dos óculos que estão literalmente à frente dos olhos ou de um telemóvel que temos na mão.

«Langdon fez que sim com a cabeça. Há décadas que deixara de sentir o relógio do Rato Mickey no pulso.

«Sabia que o conceito de «realidade filtrada» era um tema recorrente nas antigas escrituras. O Vedanta hindu, que tinha inspirado grandes físicos quânticos Como Niels Bohr e Erwin Schrödinger, descrevia a mente física como um «fator limitativo» que só conseguia captar uma fração da consciência universal conhecida como “Brahman”. Os sufis definiam a «mente» como um véu que disfarçava a luz da divina consciência. Os cabalistas diziam que as “klipot” da mente obscureciam quase toda a luz de Deus. E os budistas avisavam que o ego era um lente limitadora que nos fazia sentir separados do universo: “uni-versum”, literalmente «tudo como um».

« - A neurociência moderna – continuou Katherine – identificou agora o mecanismo biológico através do qual o cérebro filtra os dados que recebe. – Um leve sorriso perpassou-lhe os lábios. Chama-se GABA. Ácido gama-aminobutírico.

« - Certo. – Langdon lembrou-se de que a maior parte do trabalho de doutoramento de Katherine fora sobre a química do cérebro.

« - O GABA é um composto notável, um mensageiro químico no cérebro que desempenha um papel fundamental da regulação da atividade cerebral. Mas provavelmente não da maneira que julgas. Especificamente, o GABA é um agente “inibidor”.

« - Isso significa o quê, “impede” a atividade cerebral?

« - Exato. Diminui os disparos neuronais e “constringe” a atividade geral dos neurónios. Isto é, o GABA desliga partes do cérebro, numa tentativa de filtrar estímulos excessivos. No nosso entendimento mais básico, a filtragem feita pelo GABA assegura que o cérebro não fica sobrecarregado com demasiada informação. Usando a analogia do rádio, o GABA é como um sintonizador que limita a receção a uma só frequência e bloqueia dúzias de outras.

« - Até agora, tudo isso faz sentido…

« - O GABA chamou-me a atenção há uns anos – continuou Katherine, entusiasmada. – Li que o cérebro de um recém-nascido tem níveis incrivelmente “elevados” de GABA, que filtram tudo, exceto o que está diretamente à frente da cara do bebé. Assim, os recém-nascidos praticamente não têm noção dos pormenores espalhados pelo espaço à sua volta. Os filtros funcionam como um par de rodinhas de aprendizagem, que protegem a mente do bebé de demasiada estimulação conforme ela se desenvolve. Com o crescimento, os nossos níveis de GABA diminuem lentamente e começamos a captar uma maior parte do mundo e a ganhar um entendimento mais vasto.

«”Fascinante”, pensou Langdon. Sempre julgara que os recém-nascidos tinham um campo minúsculo de perceção por não conseguirem ver bem.

« - Portanto, pus-me a investigar mais a fundo – explicou Katherine – e descobri que os monges tibetanos também têm níveis excecionalmente  elevados de GABA durante a meditação. Ao que tudo indica, o transe meditativo causa um aumento do neurotransmissor inibidor, que desliga quase todos os disparos neuronais, evitando basicamente que a maior parte do mundo exterior entre no cérebro durante o estado de meditação profunda.

«”A ideia esquiva da mente vazia”, refletiu Langdon, que conhecia o objetivo da meditação, mas nunca soubera qual era o processo químico através do qual era alcançado. “Bloqueando literalmente o mundo… regressando à pureza da mente recém-nascida”.

« - Os resultados não foram assim tão surpreendentes – disse Katherine -, mas deram-me uma ideia: a de a consciência humana ser um “sinal”… que flui para o cérebro através de uma série de portas.

« - Portas que decidem a quantidade de mundo que deixam entrar.

« - Exato, e foi há cerca de dezoito meses, durante a minha investigação mais aprofundada sobre o GABA, que me deparei com um artigo de neurociência escrito… pela Brigita Gessner.

«”Ah,sim”, pensou Langdon, “foi isso que suscitou o convite para a Katherine vir fazer a palestra a Praga”.

« - O artigo de Gessner – revelou Katherine – era sobre um “chip” para a epilepsia que ela inventou e que era capaz de contrariar uma crise iminente, desencadeando a resposta natural GABA do cérebro, «acalmando» literalmente os nervos. Fazia sentido. É que a epilepsia é uma patologia muitas vezes relacionada com níveis perigosamente “baixos” de GABA, que é o mecanismo de travagem do cérebro. Quando o GABA é muito baixo, o cérebro entra em hiperatividade, com disparos neuronais descontrolados, e em última instância…

« - Tem um ataque epilético.

« - Sim – confirmou ela, bebendo um gole rápido da sua “Kofola”. – A tempestade elétrica caótica de um ataque epilético é exatamente  o “oposto” da mente focada e vazia de um monge a meditar; os ataques estão relacionados com um défice de GABA… e a meditação com um excesso de GABA. Eu estava ciente de tudo isto, mas o artigo dela lembrou-me que os ataques epiléticos são são muitas vezes seguidos de um período refratário agradável conhecido como beatitude pós-ictal: um estado de consciência sereno e alargado, acompanhado de irrupções de conectividade, criatividade, esclarecimento espiritual e experiências fora do corpo.

«Langdon recordou o episódio com Sasha, bem como as descrições feitas por inúmeros visionários epiléticos da História.

« - E, de repente, dei por mim a pensar – disse Katherine – “como” é que um cérebro epilético consegue fazer tão depressa a transição da tempestade de uma crise… para a beatitude pós-ictal.

«Langdon encolheu os ombros.

« - Deduzo que um pico natural dos níveis de GABA… acalme a tempestade?

« - É um belo palpite… eu pensei o mesmo. Chama-se inibição de rebote e acontece, de facto, mas não imediatamente. Primeiro, antes disso, acontece “outra” coisa. O cérebro “reinicia”. O sistema inteiro desliga. E, quando volta a ligar, fá-lo “gradualmente”… ganhando tempo para que o cérebro restaure os seus níveis de GABA, volte a ativar os seus filtros e proteja o cérebro que desperta de demasiados estímulos.

« - É como se acordássemos de manhã… abríssemos os olhos “devagar” para dar às nossas pupilas tempo para se fecharem e filtrarem uma parte da luz matinal.

« - É isso mesmo! Só que, “neste” caso, nunca vemos a verdadeira luz matinal, porque, quando acordamos, alguém está simultaneamente a fechar umas cortinas grossas nas nossas janelas, por isso não conseguimos ver o que está realmente lá fora.

« - E esse “alguém”… depreendo que seja o GABA?

« - Exato. O GABA “normalmente” fecha as cortinas a tempo, antes de abrirmos os olhos. Mas se houver uma falha de sincronismo e as cortinas não fecharem suficientemente depressa…

« - Captamos um vislumbre do mundo exterior.

« - Sim – confirmou ela, sorrindo. – E parece que é linda. A realidade sem filtros. A beatitude pós-ictal. A consciência pura.

«”Impressionante”, cogitou ele, perguntando-se se algumas das famosas «centelhas de génio» da História poderiam ser atribuídas a uma falta de sincronismo: um breve instante em que o portal para a realidade ficou, por erro, entreaberto.

« - Quanto mais pensava no GABA – disse Katherine -, mais me apercebia de que o GABA era a chave que eu procurava…

« - A chave para…?

« - “A chave para compreender a consciência!” – exclamou ela. – Os seres humanos têm uma mente extraordinariamente poderosa, mas têm também filtros extraordinariamente eficientes para evitar uma sobrecarga de estímulos. O GABA é o véu protetor que evita que o nosso cérebro experiencie aquilo com que não conseguimos lidar. “Limita” a vastidão da nossa consciência. Este químico, por si só, pode ser a razão por que os humanos não conseguem captar a “realidade” como ela é verdadeiramente.

«Langdon recostou-se no banco luxuoso da limusina, absorvendo a ideia provocadora.

« - Estás a sugerir que existe uma realidade à nossa volta… que não conseguimos captar?

« - É “exatamente” isso que estou a sugerir, Robert. – Os olhos dela faiscaram de entusiasmo. – Mas isso nem sequer é da missa a metade.»»

(In “O SEGREDO DOS SEGREDOS”, de Dan Brown, Planeta, págs. 353 a 357)   

Benavente, 14.09.2025

- Victor Rosa de Freitas -



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